quarta-feira, agosto 12, 2009

A dois passos do paraíso

Algumas ocupações humanas são tão antigas quanto a própria vida social. Outras ocupações são mais recentes, embora, se as observarmos bem, elas são aperfeiçoamentos de outras. Conversas são antigas.

Na tradição judaica, uma tradição da palavra, os dois primeiros capítulos apresentam uma narração que é sempre uma conversa do ser consigo mesmo: é Javé conversando consigo enquanto cria o mundo e, quando o primeiro homem diz a primeira conversa é uma conversa consigo mesmo, quando ele define o que é a mulher. Não existe o outro que pode pensar ou falar ou se definir, mas é o mesmo que diz o que o outro é.

A primeira conversa, de um ser com outro ser ocorre entre a Serpente e a Mulher. Sabemos o resultado dessa primeira conversa sobre o fruto que havia sido proibido. Daí então virão muitas outras conversas. E o próprio Javé dirige-se diretamente às suas criaturas que se escondem, começam a colocar a culpa de uma ação realizada escondida do criador do jardim no outro; dizem que se um errou o outro também está errado; mas ninguém assume que é responsável pelo que fez. É um parlamento, uma assembléia cheia de acusações aos demais, jamais de auto-acusações, de assumpção de responsabilidades.

Outro incidente de pouca conversa entre os homens envolvidos é a história de Caim e Abel, que jamais trocam palavras entre si. Caim mata Abel sem que o relator dos acontecimentos apresente os dois conversando. Apenas diz que Caim diz para Abel: “Saíamos.” E o mata. Javé conversa com Caim antes e após a morte de Abel. E após a morte de Abel, Caim conversa com Javé, e suas palavras são semelhantes a de seus pais após terem se refestelado secretamente do fruto que lhes havia sido proibido. Descoberta a farra que em segredo foi realizada em benefício de alguns, surpresos por terem sido descobertos, todos começara a parlamentar que eram inocentes, ou nada poderia lhes ser imputados, pois os outros também o fizeram. Quanto a Abel, bem esse jamais falou, ele foi quem mais perdeu, embora Javé tivesse gostado muito de suas ofertas.

Ora, conversar, trocar idéias, dizer o que pensa, o sente, mas fazer isso de maneira explícita para ser a base de todo bom entendimento. Conversando podemos chegar a novas maneiras de entender o que já entendemos, ou perceber que o outro que nos enganar. Toda boa mercancia vem de muita conversa, de muito diálogo: mercadores, mercadantes, bons comerciantes, bons parlamentares sabem disso. Mas é sempre bom conversar de maneira que todos os interessados tenham participação, que nada seja secreto, ou só de alguns. É certo que Javé teve que decidir consigo mesmo a criação, ele teve que convencer-se que era algo a ser feito. Parece que ele disse, informou que não deveria haver banquete com um determinado fruto, entre tantos que estavam á disposição. Ele não fez segredo disso. Até disse o seu uso levaria á morte, à destruição. Mas, eis que ocorreu uma conversa entre uma personagem – serpente – com outros personagens - mulher, homem – mas na ausência de um dos personagens – Javé. Dessa reunião secreta veio o banquete do qual frutificou a morte anunciada.

Os negócios feitos às escondidas levam à morte das conversas, das possibilidades de entendimento, pois todos põem a culpa nos demais. Ninguém é culpado. Nem o irmão, nem o pai, nem o avô, nem o neto, nem o namorado, nem o amigo, nem o coronel, nem o cangaceiro, nem o agricultor, nem o pastor, nem o conselheiro. E como ninguém é culpado, todos vivem com medo, pois parece haver uma possibilidade de existir, em algum lugar, um dossiê, uma pasta vermelha (pode até estar vazia) que seja uma chamada para uma conversa com algum mercador andante, algum especialista em prometer que “seus olhos abrirão e sereis como deuses, versados no bem e no mal”.

E então...

Nenhum comentário: