segunda-feira, julho 21, 2008

Aqueles Del-Rei não podem receber o baraço

Outro dia, entrevistando o professor Luiz Carlos Marques Luz, ele mencionou haver recebido a orientação de ler jornais para ser um historiador. É que os historiadores buscam a pesquisa histórica a partir de algum problema que o seu tempo vive. Pois bem. Recentemente estamos recebendo aulas de direito na imprensa, notadamente nos telejornais. Aulas dos diversos ramos do direito: penal, civil, criminal, constitucional e outros. Embora não se possa definir com exatidão o momento inicial das aulas, podemos sugerir o caso do assassinato de uma criança por seus pais (pai e madrasta) e o caso da ação da Polícia Federal em torno nas atividades de um banqueiro que, nas últimas décadas, tem aparecido em noticiário policial.

Neste último caso chama atenção a rapidez de concessão de habeas corpus e libertação do banqueiro, entre outras razões, por conta da utilização de algemas no aprisionamento daquele cidadão e de seus parentes e associados mais próximos. Ficamos sabendo que a presidência do Supremo Tribunal Federal atende 24 horas por dia, mesmo em tempo de recesso, para garantir que o banqueiro não ficasse aprisionado e que a lei fosse cumprida. Esse cumprimento da lei promoveu farpas entre o presidente do STF e o Ministro da Justiça, por conta da difícil interpretação da mesma lei: a polícia pode ou não pode utilizar algemas foi o centro da questão. Esqueceu-se a questão de milhões de reais (que parecem ter procedência pouco esclarecida) envolvidos, a tentativa de suborno aos policiais, questões de corrupção, malversação de dinheiro público, e outras coisinhas menores. A utilização das algemas em certos presos incomodou de tal modo a ordem pública que, surpreendentemente, o presidente da República promoveu uma reunião entre o presidente do STF e o Ministro da Justiça. Uma foto saída nos jornais mostra o presidente sério como um pai que impõe um carão aos filhos e estes, sorridentes, diziam ao pai que está tudo em ordem. A ordem veio com o afastamento dos delegados desse caso. Pouco se pode dizer além disso, e as revistas e jornais já não falam mais desse assunto. Lembra a peça Farsa dos Almocreves do poeta Gil Vicente: “cedo não haverá vilão. Todos del-rei, todos del-rei.

Lendo Os Excluídos do Reino, escrito por Geraldo Pieroni, que no segundo capítulo trata das Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, encontrei um pouco a razão do horror que fez perder o sono o presidente do STF. Nas Ordenações Filipinas (feitas por ordem de Dom Felipe II e continuadas e postas em vigor após a Revolução de 1640 por Dom João IV), o livro V trata do Direito Penal. Ali está dito que certas pessoas, os nobres, aqueles de são del-rei, os fidalgos, estão isentas de certas penas. É que a legislação do Antigo Regime, aquele que teria acabado com a Revolução Francesa de 1789 e as seguintes, é uma legislação garantidora da desigualdade social; daí o desejo de enobrecimento que se verifica na sociedade portuguesa daqueles séculos e que foi herdado pelas “zelites” brasileiras. O Título CXXXVIII, do Livro V das Ordenações Filipinas define as “pessoas que são escusas de haver pena vil”, relacionando as profissões e títulos dos nobres que “devem ser relevados de haver pena de açoute, ou degredo com baraço e pregão, por razão de privilégios ou linhagem”. Não vou transcrever a lista, pois hoje ela está quase resumida à posse e apresentação de diploma de título superior. Talvez seja essa uma das razões para a proliferação de faculdades dos mais diversos cursos técnicos transformados em cursos superiores. No dizer de Gil Vicente:Cedo não haverá vilão." É claro que essa “qualidade” , na prática, é proibida para um povo analfabetizado pela política de ausência de escolas.

Entretanto, se o diploma formação superior é uma garantia de privilégios, imagine se o portador do diploma seja, também, portador de bilhões de reais! E se a mesma pessoa for parente do Barão de Jeremoabo, aquele que incentivou a nação brasileira para a destruição do Arraial de Canudos, no final do século XIX, penso que, então deve ser entendida como normal a aplicação das Ordenações Afonsinas.

A humilhação pública sempre foi reservada às pessoas comuns, imprimindo nelas o estigma da vergonha. O procedimento judiciário para os nobres foi portanto suavizado pela legislação que lhes reservava certos privilégios. (PIERONI, Geraldo. Os Excluídos do Reino. Brasília: Editora da UNB, 2006. 2ª edição. P 47)

O uso de baraço, que significa corda e hoje pode ser entendido como sinônimo de algemas, está proibido para a atual nobreza brasileira, é o que nos ensinam esses recentes acontecimentos e posturas de nossas autoridades, elas próprias geradoras de sua nobreza. Um antigo líder sindical costumava nos alertar contra as artimanhas das elites ou Zelite.

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