quinta-feira, maio 24, 2007

CRISTIANISMO REBELDE NA AMÉRICA LATINA - TRAJETÓRIA DA IGREJA: DE MEDELLÍN (1968) A APARECIDA (2007)

O texto que segue abaixo foi publicado na revista Eclesiática Brasileira -REB-, volume 266, de abril 2007. [451-450] Estou pondo no blog, para facilitar aos meus alunos a sua leitura, uma vez que essa revista não faz parte do acervo da UFPE.



CRISTIANISMO REBELDE NA AMÉRICA LATINA - TRAJETÓRIA DA IGREJA: DE MEDELLÍN (1968) A APARECIDA (2007)[1]
Prof. Dr. Severino Vicente da Silva[2]


Antes de mais nada queremos agradecer o convite que nos feito para proferir algumas palavras, que serão simples, especialmente para ouvidos sofisticados e mais habituados a análises mais profundas e teológicas. Embora tenha eu, durante algum tempo, a maior parte da minha vida, me dedicado como um missionário católico no meio onde vivi e em todos os meios, e os vivi enquanto leigo, portanto sem mandato institucional, embora à Igreja tenha servido, além de a Deus faze-lo, as reflexões tentarão fazer uma leitura possível do “catolicismo rebelde na América Latina”. Não falarei como católico, estarei querendo falar como historiador, se historiador eu fosse.

A perplexidade do papa – Onde Deus estava?
Os anos sessenta a noventa do século passado mostram uma tendência do cristianismo na América Latina que viveu em busca de uma compreender a missão cristã a partir da Sociedade, ou seja, dos problemas, dos limites, da história, dos sofrimentos dos homens da América Latina. Viviam, os homens e as mulheres latino - americanas, um grave período ditatorial, ditaduras militares proliferavam no continente, forjadas no bojo de uma cosmovisão de guerra fria, que se formara desde a clausura da dita Segunda Guerra Mundial.
O conflito que terminara em 1945 pôs graves questionamentos aos cristãos, afinal ele apresentou uma face de barbárie em uma Europa que havia civilizado o mundo. Recentemente o atual papa perguntou onde andava Deus enquanto alguns europeus massacravam uma parte da humanidade. Ao término da guerra havia uma perplexidade que o jovem José Ratzinger viveu e, anos depois, como o papa Bento XVI expressou no início do sexto ano do século XXI. Afinal, o massacre ocorrido no final da primeira metade do século XX foi perpetrado na Europa cristã. Como foi possível que tal fato ocorresse depois de quase dois mil anos de pregação e prática cristã na Europa, uma Europa que havia exportado o cristianismo para as Américas, para a Ásia e para a África?
Além da perplexidade diante a “ausência de Deus”, os europeus assistiram, durante e após o conflito, os seus impérios fragmentar-se, assim como ficaram fragmentados muitos dos prédios de suas cidades sob o peso das bombas que caíram sob a população. Era o preço cobrado pela ascensão e queda do nazi-fascismo. Após a guerra veio a reconstrução, dos prédios, dos homens, das nações. Com a reconstrução européia veio a Guerra Fria.
Naquele período alguns religiosos já se faziam a mesma pergunta que Bento XVI veio a fazer em 2006. Jovens padres tornaram-se operários[3], pois entendiam que havia um descompasso entre os sofrimentos dos homens comuns e os esforços realizados pelos que se apresentavam em nome de Deus para a re-arrumação dos espaços políticos, culturais, religiosos, etc.. Aqueles jovens sacerdotes procuravam entender os mecanismos produtores e reprodutores das injustiças. Por motivos políticos e doutrinários aqueles jovens foram obrigados a parar a sua vivência entre os operários por decisões de Pio XII e João XXIII, dois religiosos que ocuparam a cadeira hoje ocupada por Bento XVI. Desde a cátedra onde estavam sentados, eles entenderam que o modo de viver daqueles jovens, tão inserido no mundo dos homens comuns, tão inserido no mundo tão injusto, poderia contaminá-los com o veneno dos inimigos da fé.
Fora da Europa povos procuravam ser independentes[4], estavam rompendo as correias que os prendiam ao mundo que o europeu construiu com a expansão de suas técnicas e seu modo de viver. É certo que os europeus não inventaram a servidão, mas desde que a Europa principiou a expandir-se, desde o século XIII, foram muitos os povos que provaram o amargo gosto da escravidão e injustiça, postas por aqueles que falavam em uma nova vida, em fraternidade, em igualdade e liberdade. Como tem sido difícil, para aqueles que definiram o que liberdade, aceitar a idéia de liberdade quando é um outro que pretende ser livre! Ao ver que os povos da África e Ásia pretendiam a liberdade, os líderes europeus criaram mecanismos que davam a ilusão da não dependência. Era necessário evitar que as jovens nações usassem mal a liberdade. Afinal “eles ainda não estavam prontos para a liberdade”. Os poderosos sempre acham que os dominados jamais estarão prontos para a libertação. Os jovens países, como os jovens sacerdotes católicos, poderiam ser enganados por falsas idéias de libertação e salvação. Era necessário agir para que não perdesse seus corações e suas mentes.
Ao tempo em que os povos africanos e asiáticos lutavam para estabelecer a sua independência, os latino-americanos buscavam sair da dependência em que viviam desde o século XIX. A independência política não viera acompanhada da independência econômica, o que acarretava em dependência técnico-cultural. A não inclusão da maioria dos povos no processo e na vida das nações que se declararam independentes no século XIX tornava esses povos sem liberdade para a tomada de decisões autônomas sobre os seus futuros. As elites, os grupos oligárquicos, não conseguiam enxergar o povo como parte da nação. Os governantes estavam mais próximos dos centros nervosos do sistema mundial e, com ele, comprometidos[5]. O resultado era, e ainda o é, o desnível de apropriação das riquezas produzidas; o descompasso entre o abuso dos bens econômicos, culturais e sociais por parte de uma minoria e, para a imensa maioria dos habitantes da América Latina, o quase não acesso a esses bens. Alguns dos cristãos que viviam na América Latina fizeram o questionamento dito por Bento XVI no campo de Auschuitz: Onde estava Deus que não via o sofrimento do seu povo?
Onde estava Deus na AL?
Era necessário entender o que ocorria na América Latina, que desde 1500 vinha mantendo contato com povos cristãos e civilizados, mas não acompanhavam os caminhos do sucesso moderno que seus irmãos europeus trilhavam. Muitos cristãos latino-americanos aprofundaram a experiência que aqueles jovens sacerdotes europeus realizaram após o Grande Conflito que marcara a Europa e a sua consciência. Mas os latino-americanos fizeram novas leituras teológicas, não mais utilizando os instrumentos intelectuais criados a partir das experiências dos cristãos europeus, ou seja, apenas a filosofia tomista, serva da teologia. Se os problemas eram diversos, as respostas deviam ser diversas e os instrumentos para a solução dos problemas não poderiam ser os mesmos. Os cristãos latino-americanos buscavam por si mesmos, a solução para seus problemas e suas angústias. Assim, além da filosofia perene, passaram a utilizar o instrumental trazido pelas ciências sociais.
Entrento o comportamento dos cristãos da América não ocorre desassociado dos movimentos mundiais. Ao longo do século XX a Igreja Católica desenvolveu uma política de concentração de poder na cátedra romana[6], diminuindo a ação dos episcopados, tornando os bispos quase que transmissores das disposições vaticanas e subtraindo o múnus dos leigos. O papel do leigo na Igreja era, basicamente, assistir aos atos litúrgicos e, na sociedade, chegar aos locais em que não eram aconselháveis a presença do clero.
Após o vendaval da ação dos governos liberais latino-americanos no último quartel do século XIX, a Igreja se refez ao conciliar com esses mesmos liberais no início do século XX; depois, quando já começava o esgotamento da aliança com a oligarquia liberal, nos anos quarenta, a hierarquia promoveu alianças com os governos populistas de vários os países latino-americanos. Em algumas regiões da América havia uma tendência mais radical, a que buscava fazer uma revolução de maneira mais impaciente. Os anos cinqüenta novas adequações deviam ser feitas. Em todas as partes do continente explodiam os limites de tolerância das camadas sociais “menos favorecidas”, como se dizia. O modelo populista foi sendo exaurido pelas modificações e crises do capitalismo.
Alguns casos
No caso da Argentina, A maioria dos bispos viu no peronismo a possibilidade de uma restauração da cristandade. [7] Mas essa aliança rompe-se em meados da década de cinqüenta e, nessa ruptura com o populismo peronista a Igreja argentina ficou mais próxima dos grupos de tendência mais à direita. Ao retorno de Perón, após o exílio, a Argentina foi-se levando ao regime de exceção, a uma ditadura preocupada com a conservação do Estado Nacional, com a proteção e a segurança desse Estado. A hierarquia católica seguiu os novos donos do poder, calando-se sobre o sofrimento dos homens e mulheres argentinas, que possivelmente podiam perguntar: onde Deus estava? Será que as Loucas da Praça de Maio não faziam essa pergunta?
No Brasil, outro grande país da América Latina, desde 1930 a hierarquia vinha desenvolvendo uma política de aliança com Vargas e as oligarquias regionais, os anos cinqüenta ainda foram de colaboração, agora já dentro do espírito nacional-desenvolvimentista. Quem não se lembra da participação dos bispos nos debates em torno da criação da Superintendência do Desenvolvimento da Amazonas – SUDAN, e da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste – SUDENE?
A segunda metade do século passado foi também o período em que a sociedade, a Igreja brasileira, bem como toda a América Latina, terão que confrontar-se com o problema agrário. A modernização, ou a atualização das relações da região com as novas tendências do capitalismo, geraram conflitos que tornaram explícita a existência de nascimento de novos atores sociais, e também de uma igreja popular. Uma parte significativa da hierarquia pôs-se ao lado da tradição, enquanto outra parte buscava estar presente no local da desolação e da esperança. E eram muitos os grupos sociais e partidos políticos que se aproximaram desses novos atores sociais. A Igreja foi um deles.
Uma fresta para o mundo
O final dos anos cinqüenta foi interessante para os cristãos de maneira geral, porém mais interessante para os da América Latina. A guerra fria entre as duas grandes potências chegava ao espaço sideral com a viagem de Yuri Gagarin; as esquerdas estavam perplexas com o relatório de kruchev; a Revolução chegava ao Mar do Caribe – Cuba; os Estados Unidos da América do Norte deram início à corrida espacial, e o novo papa, João XXIII, começava a falar da realização de um concílio ecumênico.
O Concílio Vaticano II, convocado pelo papa João XXIII, foi chamado para discutir os problemas que os cristãos enfrentavam no mundo moderno, mas eram especialmente os problemas dos católicos europeus ou do que se convencionou chamar de Primeiro Mundo. Os pobres da América latina, da Ásia e da África não haviam sido chamados – sejamos claros – como convidados de primeira hora, nem mesmo como protagonistas, eram parte da cena – deveriam ser. Chegaram aos poucos, contando com poucos aliados na Cúria Romana. Durante o Concílio parte da Igreja descobrirá que existe um mundo além da Europa. Que existem outros problemas além dos problemas europeus. O Concílio Vaticano II pouco disse para os católicos não europeus, sobre os problemas dos católicos não europeus e a partir da realidade dos católicos não europeus. Por isso os bispos da América Latina perceberam que era necessário discutir os problemas dos cristãos latino-americanos, a partir da realidade vivida por esses cristãos.
A Conferência Episcopal da Latino América – CELAM, havia sido criada em medos dos anos cinqüenta, uma tentativa de possibilitar uma visão “holística”, capaz de superar as visões localizadas dos bispos em um que se globalizava. À medida que pessoas de diversos lugares se encontram, elas criam a possibilidade de entender que os seus problemas locais estão ligados com os problemas de outros lugares: o mundo não formado por mundos isolados, e é católico em seus problemas, ou melhor os seus problemas são universais, globais. Ainda durante o Concílio pensou-se em uma assembléia dos bispos para estudar, verificar o que eles poderiam fazer diante de uma situação que fazia com os que alguns que viviam na América latina e dela, perguntassem: onde está Deus?
Depois do Vaticano II foi necessário um outro concílio na América e este foi realizado na Colômbia. Naquele país havia uma Igreja que quase não havia notado a existência do Concílio Vaticano II, exceto nas questões litúrgicas. A hierarquia e o clero colombiano não estavam preparados para a II Conferência Episcopal da América latina, ocorrida em Medellín, em 1968. Mas a maior parte dos bispos e suas igrejas também não estavam preparados.
O Vaticano não é o início
É necessário, contudo, entender que mudanças estavam ocorrendo nas igrejas do continente bem antes do Concílio, embora não em todas. Não devemos, não podemos responsabilizar o Vaticano II por tudo que ocorreu em nosso continente. Embora não possamos dizer ter sido ele o iniciador das ações que geraram uma prática cristã católica mais rebelde, quase revolucionária, também não há como negar o seu papel catalisador. Bem antes do Concílio, jovens, de diversos países, estavam indo à Europa com o objetivo de completar seus estudos teológico, como vinha ocorrendo desde o final do século XIX, com a criação do Colégio Pio Latino-americano e do Colégio Pio Brasileiro. Também era grande o número de jovens seminaristas que foram completar seus estudos em Louvain, o que significa que alguns tiveram uma formação diversa daquela que era ofertada pelos institutos romanos de formação teológica. Esses jovens entraram em contato com as questões que angustiavam os europeus, era uma angústia provocada pela descolonização, pela perda dos impérios, pela necessidade de entender as novas liberdades que lhe eram dadas.
Um Terceiro Mundo surgia e obrigava à novos diálogos. Um desses diálogos era com os diversos humanismos, fazia-se o diálogo com aqueles que sempre haviam sido anatemizados, como os marxistas, [8] além do necessário diálogo com as outras religiões. A consciência dos cristãos começava a ser afetadas pela realidade social e, jovens teólogos começavam a utilizar os instrumentos oferecidos pelas ciências sociais com o objetivo de compreender os caminhos que levaram à construção das desigualdades e das injustiças. Mas também procuravam entender quais os caminhos que deveriam ser trilhados para a superação das injustiças. Por terem sido, os anos setenta e oitenta, os anos de maior proliferação das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs – ao longo de todo o continente, somos tentados a esquecer que já no início dos sessenta, muitos jovens católicos desenvolviam esforços para conciliar o cristianismo com os parâmetros do mundo moderno, como por exemplo o marxismo, na busca de uma sociedade de caráter socialista e cristão baseado na justa distribuição das riquezas.[9] Los marxistas luchan por la nueva sociedad, nosotros, los cristianos, deberíamos estar luchando a su lado.[10]
Rebeldes e controle
No Brasil, ocorria o choque entre os avanços dos pensamentos e das práticas da Ação Católica em seus diversos segmentos, mas especialmente a Juventude Universitária Católica – JUC. A JUC era um grupo de proeminência e de vanguarda, braço da hierarquia nas universidades, como desejava o episcopado, mas que, nas escaramuças para a conquista dos espaços políticos no meio estudantil, viu-se forçado a assumir posições que escapavam do controle dos bispos. Isso, a perda de controle por parte dos bispos, ocorria até entre os religiosos, como se sabe dos fatos entre os dominicanos que animaram a publicação do BRASIL URGENTE[11] , que veio a ser fechado após o golpe militar ocorrido em abril de 1964, após o padre responsável (frei Josaphat) pelo acompanhamento dos jovens que faziam o jornal ter sido afastado da função. A própria JUC veio a ser definida como entidade não católica, provocando a perda de jovens, para a Igreja. [12] Mais tarde eles formaram a Ação Popular, entraram em movimentos guerrilheiros, sofreram o exílio e finalmente retornaram após o movimento que levou à anistia e nova redemocratização do país, alguns se tornando dirigentes políticos e de partidos, alguns até na direção do executivo federal, no início do século XXI.
Enrique Dussel diz ao se contar a história da Igreja na América Latina, a Revolução Cubana, dirigida por Fidel Castro e Che Guevara, deve ser tomada como marco limite. 1959 é também o ano em que o padre e sociólogo Camilo Torres retornou para a Colômbia, após estudar cinco anos em Louvain, Bélgica. Ao chegar a seu país fundou a Faculdade de Sociologia na Universidade Nacional e, em seus cursos e no contato com os estudantes, aprofundou suas as análises sobre os problemas que impedem o desenvolvimento da Colômbia. Em pouco tempo passou a ter problemas com as autoridades eclesiásticas do seu país. No ano de 1961, um grupo padres que organizou debates teológicos em comunidade dominicana na Colômbia foi afastado. A Igreja estava muito comprometida com os setores dominantes para permitir que alguns jovens de idéias mais livres, mais adequadas aos novos tempos e necessidades, quase chegando ao marxismo, viessem a criar problemas para a tranqüila Colômbia. Em 1962 Camilo foi destituído da cátedra pelo cardeal Luis Concha Córdoba. Camilo então começou a lecionar em faculdades laicas, viajou a outros países fazendo palestras, ao tempo em que cresceu a sua preocupação com os pobres e oprimidos e entendeu que o seu amor de cristão o leva, obrigatoriamente, a uma revolução social. Em 1965 fez publicar a Plataforma de Frente Unida, nela procurou promover a união de trabalhadores, estudantes, intelectuais cristãos. Em julho daquele ano solicitou a sua laicização. O seu pensamento, a sua maneira de entender o viver o cristianismo não se adequava às exigências dos acordos de cooperação que a hierarquia vinha mantendo com os liberais, seus antigos inimigos. No mês de janeiro de 1966 Camilo passa a integrar o Exército de Libertação Nacional. No mês seguinte, a 15 de fevereiro, Camilo Torres morre em seu primeiro enfrentamento militar. A insensibilidade da Igreja Colombiana em verificar a situação de seu povo no início dos anos sessenta talvez seja uma das origens da situação caótica que vive ainda hoje aquele país.
Durante as décadas de sessenta e setenta foram muitos os cristãos católicos que derramaram o sangue em toda a América, entendendo que a opção pelos pobres, - sem adjetivo explícito nos Documentos da Conferência de Medellín (1968), silenciada na Conferência de Sucre (1972), adjetivada simplesmente na Conferência de Puebla (1979) e com muitos adjetivos em Santo Domingo (1992) – era uma opção que passaria por uma revolução. As adjetivações diminuem o caráter rebelde e revolucionário dessa opção. Mas os rebeldes não esqueciam as orientações do “conservador” Paulo VI que parecia entender certos arroubos juvenis diante da “injustiça institucionalizada” que se via na América Latina. [13]
O abrandamento da opção pelos pobres, não diminuía os anseios de libertação das camadas que estavam no sofrimento, quase esquecido de Deus. Aqui e acolá vieram alguns documentos eclesiais lembrar com frases bíblicas que deus ouvia os clamares do seu povo. [14] Mas nem sempre os que definiam o que Deus devia ouvir concordavam com o que diziam os “rebeldes” da América Latina. A teologia da libertação, reflexão que vinha desse encontro com os pobres é questionada e posta sob suspeição pelo presidente da Congregação de Defesa da Doutrina e da Fé. Colocada sob suspeição, a Teologia da Libertação nunca foi formalmente condenada, embora jamais tenha deixado de estar sob fogo cerrado dos grupos conservadores e temerosos das mudanças.
No mesmo ano em que se reuniam os bispos da América Latina, em Santo Domingo, ocorria, na Nicarágua um processo revolucionário que pôs, lado a lado cristãos e não cristãos, católicos e marxistas, nos campos de batalhas. Os cristãos justificavam a sua presença na luta revolucionária, não por ideologias, mas pela sua própria fé. Assim ocorreu a Ernesto Cardenal, que lutava contra a ditadura que afligia a Nicarágua mais de meio século, e muitos outros que foram publicamente repreendidos pelo papa João Paulo II, no ano de 1983. Três anos antes havia sido assassinado, em plena ação litúrgica o arcebispo de El Salvador, Dom Oscar Romero, e este martírio foi solenemente ignorado pelos líderes maiores do catolicismo. Em um dos seus últimos sermõe disse: "Aquilo que faço é um esforço para que tudo aquilo que nos propôs o Concílio Vaticano II e as reuniões de Medellín e Puebla não fiquem no papel e não nos limitemos a estudá-los teoricamente". [15] Parecia também que Deus não estava vendo o que ocorria na Guatemala, uma vez que os camponeses não possuíam terras, e o massacre que ocorreu no país pouco interessava ao defensor da Doutrina. A rebeldia contra as injustiças era entendida, pelos controladores da ortodoxia, como uma rebeldia à doutrina. E muito interessante, não podemos deixar de lembrar, que um dos que mais criticava aqueles que entendiam como injusta um situação de miséria, que se rebelaram contra a injustiça na América Latina, venha hoje, quase se rebelando contra Deus, e perguntar onde Deus estava quando os homens – não todos, não se rebelaram contra o nazismo.
Conclusão
O Catolicismo Rebelde teria ocorrido nos anos sessenta e setenta do século passado. Mas, se observamos bem, foi um tempo de rebeldia de uma juventude que se cansara da acomodação que viera do sucesso da luta contra o nazi-fascismo e do sucesso da reconstrução européia; foi uma rebeldia nascida do tempo e no tempo em que certos modelos sofriam desgaste tal que, nem mesmo Deus suportava a inanição diante do sofrimento. Apenas os responsáveis pela ordem, seja na Igreja, seja nos Estados não compreendiam que havia que se realizar mudanças. Lembremos da revolta dos jovens americanos que seguiam os protestos de James Dean, Elvis Presley – o Rock on rool; dos jovens franceses no maio de 68, contra o marasmo nas universidades e na sociedade; os jovens da Primavera de Praga;os jovens mexicanos que foram metralhados no espaço de sua universidade; os jovens brasileiros inconformados com os limites impostos pela ditadura militar; os jovens americanos que se recusavam a acatar o chamamento do exército para morrer na Guerra de Independência do Vietnan; o movimento hippie e muitos outros. A rebeldia católica não ocorreu por causa do catolicismo ou do concílio Vaticano II, essa ocorreu porque os católicos estavam vivendo em um mundo que se rebelara e estavam atentos aos sinais dos tempos.
Depois os católicos continuaram católicos, a sua rebeldia tinha o limite da sua pertença a instituição e do seu tempo. Como todos eles tinham uma causa pela qual poderiam se rebelar e rebelaram-se, enquanto católicos durante algum tempo, depois .... Depois, muitos sucumbiram ao tempo, talvez alguns perderam a sua identidade como católicos; talvez se cansaram de lutar em duas frentes: a interna, o enfrentamento dos líderes da Igreja que mais um vez estavam atualizando as alianças com a nova situação mundial; e a frente externa, pois o mundo pareceu ter cansado de tentar mudanças estruturais e estava optando por mudanças conjunturais. Entretanto, o fermento da esperança parece que continua, pois a história ainda não acabou.


BIBLIOGRAFIA


AZZI, Riolando. O concílio Vaticano II no contexto da Igreja e do mundo: uma perspectiva histórica. In REB. Fasc. 262. abril/2006.
BOFF. Leonardo. O caminhar da Igreja com os oprimidos, do Vale de Lágrimas à Terra prometida. Rio de Janeiro: Codecri, 1980
BOTAS, Paulo Cezar L. A bênção de abril, “Brasil Urgente”. Memória e engajamento católico no Brasil 1963-1964. Petrópolis: Vozes, 1983.
GAROUDY, Roger. Do Anátema ao diálogo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
Martina, g. Matina, Giacomo. História da Igreja, volume IV. São Paulo: Edições Loyola, 1997.
NAVARRO, Edgar Camilo Rueda. Biografia política de Camilo Torres .http//www.marxists.org/espanol/camilo/biografia.htm - no dia 9/6/2006
Boletim Semanal da Rádio do Vaticano, 23/03/2005. Visto na internet no dia 6/7/2006.
RICHARD, Pablo, Mortes das cristandades e nascimento da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1982.
SILVA, Severino Vicente da. Entre o Tibre e o Capibaribe: Os Limites do progressismo católico na Arquidiocese de Olinda e Recife. Tese de Doutorado. Recife: Prorama de pós-graduação de História – UFPE. 2003. (mimeo)
DOCUMENTOS:
OUVI OS CLAMORES DO MEU POVO. Documento do Regional Nordeste II, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em 1973.
Paulo VI. Populorum Progressio
[1] Quinta-feira, 6 de julho às 19h00min: Local: Livraria Cultura Paço Alfândega - R. Madre de Deus, s/n - loja 135 - Recife/PE
[2] Professor do Departamento de História da UFPE
[3] Referimo-nos a uma experiência francesa, de padres operários. Ele foi proibida após a prisão de alguns padres em uma manifestação anti-americana durante a visita de um general estadunidense. Suspensa durante o pontificado de Pio XII, a experiência dos padres operários veio a ser definitivamente proibida por João XXIII.
[4] Este é um momento na história universal que se diz Descolonização, a desestruturação dos impérios império coloniais europeus na Ásia e África, criados pela expansão da Revolução Industrial.
[5] Pablo Richard, em Morte das Cristandades, nascimento da Igreja.publicado pela Editora Paulinas, , aponta que ocorreu nesse momento uma adequação da Igreja aos governos populistas que então se organizavam na América Latina.
[6] AZZI, Riolando. O concílio Vaticano II no contexto da Igreja e do mundo: uma perspectiva histórica. In REB. Fasc. 262. abril/2006. [337-369]
[7] RICHARD, Pablo, Mortes das cristandades e nascimento da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1982. p 121.
[8] Um dos grandes momentos desse diálogo foi organizado por Roger Garoudy, posteriormente publicado sob o título, no Brasil, – Do Anátema ao diálogo, pela Civilização Brasileira.
[9] NAVARRO, Edgar Camilo Rueda. Biografia política de Camilo Torres .http//www.marxists.org/espanol/camilo/biografia.htm - no dia 9/6/2006
[10] Camilo Torres apud Edgar Navarro.
[11] BOTAS, Paulo Cezar L. A bênção de abril, “Brasil Urgente”. Memória e engajamento católico no Brasil 1963-1964. Petrópolis: Vozes, 1983
[12] Difícil esquecer o comportamento do Arcebispo Scherer, de Porto Alegre.
[13] Paulo VI. Populorum Progressio.
[14] Documento do Regional Nordeste II, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em 1973.
[15] Boletim Semanal da Rádio do Vaticano, 23/03/2005. Visto na internet no dia 6/7/2006

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